☆... Rifa-se um coração. Rifa-se um coração quase novo. Um coração idealista.
Um coração como poucos. Um coração à moda antiga.
Um coração moleque que insiste em pregar peças no seu
usuário.
Rifa-se um coração que na realidade está um pouco usado,
meio calejado, muito machucado e que teima em alimentar sonhos e cultivar
ilusões.
Um pouco inconsequente que nunca desiste de acreditar nas
pessoas.
Um leviano e precipitado coração que acha que Tim Maia
estava certo quando escreveu:
“Não quero dinheiro, eu quero amor sincero, é isso que eu
espero...”.
Um idealista, um verdadeiro sonhador...
Rifa-se um coração que nunca aprende, que não endurece e
mantem sempre viva a esperança de ser feliz, sendo simples e natural.
Um coração insensato que comanda o racional sendo louco o
suficiente para se apaixonar.
Um furioso suicida que vive procurando relações e emoções verdadeiras.
Rifa-se um coração que insiste em cometer sempre os mesmos
erros.
Esse coração que erra, briga, se expõe, perde o juízo por
completo em nome de causas e paixões.
Sai do sério e, às vezes revê suas posições arrependido de
palavras e gestos.
Este coração tantas vezes incompreendido.
Tantas vezes
provocado.
Tantas vezes impulsivo.
Rifa-se este desequilibrado emocional que abre sorrisos tão largos
que quase dá pra engolir as orelhas, mas que também arranca lágrimas e faz
murchar o rosto.
Um coração para ser alugado, ou mesmo utilizado por quem
gosta de emoções fortes.
Um órgão abestado indicado apenas para quem quer viver
intensamente.
Contra indicado para os que apenas pretendem passar pela
vida matando o tempo, defendendo-se das emoções.
Rifa-se um coração tão inocente que se mostra sem armaduras
e deixa louco o seu usuário.
Um coração que quando parar de bater ouvirá o seu usuário
dizer para São Pedro na hora de prestação de contas: “O Senhor pode conferir ,
eu fiz tudo certo, só errei quando coloquei sentimento. Só fiz bobagens e me
dei mal quando ouvi este louco coração de criança que insiste em não endurecer
e se recusa a envelhecer.”
Rifa-se um coração, ou mesmo troca-se por outro que tenha um
pouco mais de juízo.
Um órgão mais fiel ao seu usuário.
Um amigo do peito que não maltrate tanto o ser que o abriga.
Um coração que não seja tão inconsequente.
Rifa-se um coração vego, surdo e mudo, mas que incomoda um
bocado.
Um verdadeiro caçador de aventuras que ainda não foi
adotado, provavelmente, por se recusar a cultivar ares selvagens ou racionais
por não querer perder o estilo.
Oferece-se um coração vadio, sem raça, sem pedigree.
Um simples coração humano.
Um impulsivo membro de comportamento até meio ultrapassado.
Um modelo cheio de defeitos que, mesmo estando fora do
mercado, faz questão de não se modernizar, mas vez por outra, constrange o
corpo que o domina.
Um velho coração que convence seu usuário a publicar seus
segredos e a ter a petulância de se aventurar como poeta. ...☆
☆☆... Clarice Lispector ...☆☆
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