☆... Como me sinto longe deles, do alto deste outeiro! Parece-me que pertenço a outra espécie. Vão sair dos escritórios, depois de um dia de trabalho; olham para as casas, para os jardins dos largos, com um ar e satisfação; pensam que estão na “sua” cidade, uma “bela urbe burguesa”.
Não têm medo, sentem-se em sua casa. Nunca viram senão a água domesticada que corre das torneiras, a luz que jorra das lâmpadas, quando se liga o interruptor. Têm a prova, cem vezes por dia, que tudo se faz por mecanismo, que o mundo obedece a leis fixas e imutáveis.
Os corpos abandonados no vazio caem todos à mesma velocidade, o jardim público fecha todos os dias à dezesseis horas no inverno, às dezoito horas no verão, o chumbo funde a 335º, o último bonde sai às vinte e três horas do Largo da Câmara Municipal.
É gente sossegada, um pouco taciturna; pensa no dia de amanhã, isto é, simplesmente um novo hoje. Eis todos os ingredientes de uma confortável alienação cotidiana: a rotina, a explicação fácil, os hábitos não questionados, a consciência “limpa” dos que se atolam (Lamápolis…) na hipocrisia burguesa, a crença na imutabilidade das leis naturais e sociais.
Nenhum deles sabe ou suportaria saber que “todo o existente nasce sem razão, prolonga-se por fraqueza e morre por encontro imprevisto”.
Como estou eu só, em meio a essas vozes alegres e sensatas! Todos esses sujeitos passam seu tempo se explicando, reconhecendo com satisfação que têm as mesmas opiniões.
Deus meu, que importância dão a pensar todos juntos as mesmas coisas! Como estou eu, só, no meio dessas existências enfadonhas! ...☆
☆☆... Jean-Paul Sartre, in A Náusea ...☆☆
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